Passeando pela história de Santo Varão – XI

Se o local escolhido para a instalação da Câmara do recém criado concelho de Santo Varão foi alvo de discórdia entre as autoridades citadas no artigo anterior, não foi, contudo, este o único pomo de discórdia entre estas duas autoridades. As desinteligências entre ambos estariam longe de terminar. 

Disso nos dá conta um oficio assinado pelo já citado presidente e dirigido ao Governo Civil de Coimbra, em 4/08/1842. O assunto em questão é a escolha, uma vez mais, do edifício onde passaria a funcionar a secretaria da Administração do concelho e situado “na rua do ribeiro onde habitou Faustino Ferreira de Noronha Oliveira e Saro”, o qual não mereceu a aprovação do referido administrador por “pouco decente”. Contra esta atitude se insurge aquele mesmo presidente ao afirmar “já eu suspeitava ou antes fora prevenido de que qualquer casa designada pela Câmara para aquelle fim seria rejeitada. Mas longe de o ser antes ella é boa. A pouco rezidia n ‘ella o desembargador Faustino Ferreira de Noronha Oliveira e Saro, n’ella recebia seus amigos e ahi tinha seu espólio em pratas…”

Pese contudo estas diatribes, os reais problemas do recém-criado concelho ultrapassavam-nas de longe.
A clara e objectivamente lúcida análise das receitas e despesas, feita pelo fiscal da Câmara, Faustino Ferreira de Noronha, mostra com clarividência quão difícil se tornava manter em funcionamento um concelho em que as despesas ultrapassavam de longe as receitas. Os rendimentos do concelho eram, na quase totalidade, absorvidos pelo pagamento dos ordenados do médico, cirurgião, administrador, secretários, Câmara, administrador do correio, porteiro da Câmara e professores, entre outras despesas.
A situação financeiro do município, a avaliar pelo descrito, era, pois, precária.
E será, com certeza, baseada nesta cuidada análise, que o referido fiscal coloca a questão de, até que ponto seria proveitoso aos povos a manutenção deste concelho.
Esta embaraçosa situação explica o facto de a Câmara não dar andamento às obras de reparação e melhoramentos que então se tornavam urgentes e benéficos aos povos.
Certamente que a situação longe de melhorar teria piorado, o que explica que o referido fiscal se decida por pedir à Rainha a sua extinção, facto que vem a ser consumado pelo já citado decreto de 27/12/1853.
A lucidez com que o fiscal Faustino de Noronha encara o problema é de tal modo convincente que vale a pena transcrevê-la:
” Sr. Presidente. Um pensamento na verdade nobre nos levou a organizar este concelho e affixarmos a sua sede na nossa Patria(?), porem quanto elle teve de nobre, quanto foi indiscreto e menos bem calculado, devia-Ihe ter percebido o calculo do seu rendimento e despesa; pois só assim conheceriamos se convinha aos interesses dos povos sua organização. Mas o tempo, este desengana dor dos incautos, já nos deve ter ministrado terrivel cálix da esperança e esta feito convencer que a continuação deste concelho he hum flagelo dos Povos. He sempre duro e custoso aos povos o pagamento de contribuições; mas este se lhe servira quando huma boa aplicação lhe for sentir vantagens e interesses; a authoridade que assim procede merece suas benções; porem quando desmandada deste seu dever só é indigna da confiança que lhe conferio sua eleição; mais ainda athraiçoa seus deveres e seu juramento. Certo nestes principios entrei no exame da receita e despesa deste concelho, e achei em resultado que com os ordenados de Medico, Cirurgião, Administrador, Secretarios d ‘Administraçao e Camara e outros mais empregados, como administrador do correio, correio particular d’Administração do concelho, porteiro da camara, professores d’ensino Primario de Pereira e Formoselha, pagamento de sermões Quaresmais em Pereira e Figueiró do Campo e outras mais despesas extraordinarias, contribuiçam para expostos, erão absorvidos os rendimentos dos proprios do Concelho, o da arremataçam do real das carnes e vinho e ainda os desse ilástico tributo das coimas cobrado por hum rendeiro.
Achei mesmo que nem ainda estes rendimentos erão sufficientes e a prova a encontrei ou fui achar no grande defecit que nos subcarrega.
Tendo conseguido este resultado entrei n ‘outro exame, qual se conviria que assim continuasse este concelho, e não foi custoso convencer-me que não era possivel, porque absorvendo o pessoal da administraçam do concelho todo o seu rendimento, não poderiam os aplicar hum real para o concerto de huma ponte, de huma fonte, d ‘um caminho, d ‘um marachão do rio, continuariamos a ter por casa da Camara (e assim mesmo sem ser nossa) huma casa indecente, miseravel e indigna, que authoridades ouverão já neste concelho que assim o representarão para a authoridade superior, e não podendo pois nos fazermos estas obras de verdadeiro e palpavel interesse aos povos seria não corresponder aos deveres de nosso cargo, aos do nosso juramento, consentirmos que o suor dos povos continuasse a ser o patrimonio dos empregados, sem utilidade saliente ou necessidade reconhecida dos mesmos. Tendo assim concluido tratei d’ examinar se era possivel milhorar a receita ou a dispesa; enquanto a esta achei que huma vez estabelecidos pela Camara aquelles ordenados, não cabia nas suas attribuições o cercealos ou elimina-los, e quando o podesse fazer era antão diminuta quantia, que nenhum bom resultado podia dar; e enquanto a receita, o pensar em tal seria desconhecer as miseraveis circunstancias dos povos, já demasiadamente subrecarregados. Nestas circunstancias achei um único partido a tomar; he-me doloroso, pois é eu mesmo vottar ao ostracismo a obra que tantos cuidados nos deu a nós todos a conseguir! Porem os deveres de bom desempenho do meu cargo e juramento que prestei, a esperiencia do paçado, os interesses de meus constituintes, a tanto me elevão; e é o pedirmos a Sua Magestade a dissolução do Concelho por não poder subsistir pela sua piquenez e limitados rendimentos. =Proponho portanto a dissolução do concelho por não poder subsistir pela sua piquenez e limitados rendimentos, que vossa Senhoria se servirá pôr à discussão. Senhor Presidente tenho a fazer huma piquena reflecção aos meus collegas e amigos, e vem a ser, que em matéria de tanta transcendencia devemos todos prescendir de caprixos e no progresso da discrição consultar-mos só os interesses e bem estar dos povos, devendo perante todos protestar que não é o odio ou affeição que me leva a fazer esta proposta, mas sim minha intima convicção.”

Santo Varão, em sessão da Câmara de 26 de Julho de 1842. O Fiscal = Faustino Ferreira de Noronha Oliveira e Saro.

(Fátima Batista, 2013)

Deixe um comentário